quinta-feira, março 18, 2010

A SESTA



Texto escrito por mim em abril de 1982 e publicado na edição de março de 2010 da revista acima.


Maria olhava para aquele ambiente amarelo-cinza a sua frente. Passava um pouco do meio dia e ela sentia aquela preguiça que sempre lhe tomava o corpo depois do almoço. Estava sentada, como sempre fazia naquele horário, debaixo de um velho pé de cedro em frente à sua casa. O tempo estava quente e abafado, mas vez ou outra a brisa balançava as altas galhas da árvore e lhe refrescava o calor. A claridade do espaço amarelo-cinza agredia-lhe os olhos. Não se via nada verde. Os poucos tons de ocre esverdeado que iam substituindo o verde deixado pela chuva, também já haviam sido devorados pelo amarelo-cinza. Junto com a sensação de exaustão e abandono causada por essa tonalidade e pela temperatura quente e abafada, Maria sentia uma espécie de secura e esvaziamento por dentro que lhe davam a impressão de que a qualquer momento ela iria deixar de existir. Olhou o céu. O azul pendia mais pro cinza-arroxeado: uma cor intensa, agressiva e opressora. Nenhuma nuvem. A claridade e intensidade daquela cor parada, morta lhe fizeram franzir os olhos. Maria bocejou. Suas pálpebras pesavam e a agradável sonolência dominava cada vez mais o seu corpo. Olhou e sorriu para os pequenos arbustos secos e retorcidos que se espalhavam pelo terreiro de sua casa.
Vez ou outra ouvia os movimentos da sua mãe dentro de casa. Naquele horário do dia Maria sentia-se quase particularmente feliz. Era um momento que ninguém a perturbava. Era um momento em que ela podia ficar sozinha, dedicar-se a si mesma e remexer em suas memórias em suas idéias e em seus sonhos. Era um momento só seu onde ela podia ser ela mesma ou quem quisesse. Depois desse momento de auto-dedicação, Maria voltaria para uma rotina menos agradável: lavar a louça, varrer os terreiros da casa, dar comida aos porcos e lavar algumas peças de roupa.
Não mais resistindo ao sono Maria passou a mão pelo chão afastando alguns galhos caídos e se acomodou deitando-se. Suas pálpebras se fecharam e ela dormiu. Dormiu o seu sagrado sono de depois do almoço. Mais tarde seria acordada pela cadelinha do seu pai. Ela lhe lamberia as faces e se deitaria ao seu lado até que se levantasse e fosse para dentro de casa cuidar das tarefas.
Maria sonhou. Um sonho simples sem grandes pretensões:
sonhou que a cadelinha do seu pai, era sua irmã. E no seu sonhou verificou que eram muito parecidas. No sonho, brincavam como faziam acordadas, à margem do riacho seco. Brincavam de cobrir com os dedos as inúmeras linhas deixadas pelas rachaduras da terra seca. Maria ficava encantada com aquelas rachaduras, pois formavam desenhos engraçados e estranhos.  Tulipa – a cadelinha de seu pai - atravessava o riacho sobre as linhas e Maria admirava as voltas que seu corpo dava para conseguir acompanhar aqueles desenhos. A chuva era por demais boa e esperada por todos, trazia comida e água, mas levavam embora aquelas formas mágicas que faziam com que elas descobrissem figuras misteriosas. O consolo era que com a próxima seca, outros desenhos estariam lá para serem descobertos por elas. Maria não entendia como ela conseguia ver naquelas linhas tantas coisas conhecidas: vacas, galinhas, árvores, porcos. Acreditava que algum ser misterioso desenhava aquelas coisas para ela e Tulipa descobrirem. Aquilo era um mistério para Maria.
Acordou com Tulipa lhe lambendo o rosto. Sorriu para ela e a abraçou. Espreguiçou-se, olhou para o céu e levantou-se para mais uma tarde como todas as outras.